O que os cientistas fizeram
1.Ideia de usar a gengiva como porta de entrada
Os pesquisadores partiram da observação de que a região entre dentes e gengiva — o chamado sulco gengival, especialmente o epitélio de junção (junctional epithelium, JE) — é relativamente permeável a moléculas. Isso significa que pode permitir a passagem de substâncias externas até células imunológicas.
Em outras palavras: em vez de injetar algo, pode-se “entregar” componentes de vacina diretamente ali, para que sejam captados localmente e desencadeiem resposta imunológica.
2. Construção do “fio dental vacinal”
Eles utilizaram um tipo de fio dental (ou fitas semelhantes) recoberto com nanopartículas ou materiais que carregam moléculas imunogênicas — por exemplo, proteínas, vírus inativados, peptídeos ou até mRNA.
Em camundongos anestesiados, eles colocaram esse fio ao longo da linha gengival (ou “passaram entre dente e gengiva”) para permitir que as partículas fossem absorvidas pelo epitélio de junção.
3.Testes em animais (camundongos)
Eles testaram diferentes tipos de “vacinas” no fio (proteínas, vírus inativados, mRNA) e observaram que todas essas estratégias foram capazes de induzir resposta imunológica sistêmica e também em mucosas (pulmões, nariz, saliva) nos camundongos.
Eles aplicaram o fio vacinal em 50 camundongos em um protocolo de duas semanas dentro de um período de 28 dias. Depois, expuseram os animais ao vírus da gripe “verdadeiro”. Os camundongos que haviam recebido “a vacina via fio dental” sobreviveram, enquanto os que não receberam morreram.
Além disso, foram detectadas células imunológicas (anticorpos, células T) em órgãos distantes — medula óssea, baço, pulmões — o que indica que a resposta não ficou restrita ao local de aplicação.
Comparativamente, essa via (fio dental/gengiva) mostrou-se superior à via sublingual (abaixo da língua) e equivalente à via intranasal (spray nasal) no que tange à imunização mucosal e sistêmica.
4. Teste de viabilidade em seres humanos (em pequena escala)
Para avaliar se o mecanismo de “depositar algo no sulco gengival” funcionaria em humanos, o grupo conduziu um experimento: usaram “floss picks” (aqueles palitos com fio) revestidos com corante alimentar fluorescente e pediram que 27 voluntários fizessem a aplicação (sem vacina, apenas o corante).
Observou-se que, em média, cerca de 60% do corante foi depositado no sulco gengival — ou seja, conseguiu atingir a região desejada em uma proporção significativa.
Isso sugere que a técnica é factível (ou ao menos não é impossível), embora haja variabilidade e ainda seja necessário aperfeiçoar o sistema para garantir dose consistente.
Por que esse método é interessante — vantagens potenciais
Sem agulha / mais confortável
Para muitas pessoas, o medo ou desconforto com injeções é um obstáculo. Uma vacina administrada via fio dental seria indolor ou com muito pouco incômodo.
Entrega em mucosas de porta de entrada
Muitos vírus ou patógenos entram pelo nariz, boca ou vias respiratórias. Estimular imunidade nessas mucosas pode oferecer proteção local, além da proteção do corpo (imunidade sistêmica). Esse método demonstrou atividade imunológica nas mucosas nos estudos com animais.
Distribuição / logística simplificada
Em tese, vacinas desse tipo poderiam ser produzidas e distribuídas mais facilmente, talvez sem necessidade de seringas estéreis ou pessoal especializado para aplicação. Alguns artigos mencionam que o fio dental vacinal poderia ser enviado pelo correio ou aplicado em ambientes com recursos limitados.
Resposta imunológica robusta e duradoura
Nos estudos em camundongos, foi detectada ativação imunológica persistente, com células produtoras de anticorpos na medula óssea (marca de memória imunológica) e anticorpos em diversos órgãos.
Limitações, desafios e o que ainda precisa ser demonstrado
Embora a abordagem seja inovadora e promissora, há muitos pontos que ainda impedem que ela seja usada em humanos de forma rotineira:
1. Diferenças entre camundongos e humanos
O que funciona em camundongos nem sempre funciona em humanos. A anatomia da gengiva, saúde gengival, flora oral, presença de doenças bucais, hábitos (fumar, escovação etc.) podem influenciar a eficácia da absorção.
2. Dose e consistência da aplicação
Aplicar uma dose exata de vacina via fio (e garantir que ela chegue à região correta) é desafiador. No teste com corante, apenas 60% da dose foi efetivamente depositada no sulco gengival em humanos. Isso indica variação na eficiência.
Para uso clínico, seria necessário um dispositivo padronizado e robusto para garantir que cada pessoa receba a dose correta.
3. Segurança e reações locais / controle de inflamação
A gengiva é uma região sensível. Há risco de irritação, inflamação ou mesmo danos ao tecido se houver uso repetido ou em pessoas com gengivite, periodontite ou outras doenças bucais.
Também é necessário avaliar se partes da vacina poderiam atravessar para locais não desejados, causar respostas adversas etc.
4. Eficácia para diferentes tipos de patógenos
Até o momento, o método foi testado com vírus da gripe (inativo) e alguns outros componentes de vacina (proteínas, mRNA) nos modelos animais. Mas ainda não se sabe se funcionará bem com outras vacinas, especialmente aquelas que exigem dosagens maiores ou fórmulas mais complexas.
5. Populações especiais
Crianças muito pequenas (que ainda não têm dentes), pessoas com problemas dentários graves, pessoas com próteses ou falta de dentes podem não ser candidatas viáveis. Os pesquisadores já mencionam isso como limitação.
6. Ensaios clínicos e regulação
Antes de ser usado em humanos, é necessário passar por ensaios clínicos rigorosos de segurança, eficácia, dosagem ótima, reações adversas etc. Também será necessário regulamentação por agências sanitárias (como a ANVISA no Brasil).
7. Escalabilidade e custo
Mesmo que funcione, será preciso verificar se é economicamente viável produzir milhões de unidades desse fio-vacina, como armazená-lo, transportá-lo, mantê-lo estável até o momento de uso etc.
Em resumo
O estudo descreve um método bastante criativo: transformar fio dental (ou materiais similares) em um veículo para entregar vacinas diretamente ao sulco gengival, aproveitando a permeabilidade local para iniciar uma resposta imunológica. Nos animais, o método mostrou-se eficaz — os camundongos vacinados com fio dental sobreviveram à infecção por gripe, com resposta imunológica em órgãos distantes.
Em humanos, ainda só foi testada a deposição de corante, e mesmo assim com resultados promissores (≈ 60% de eficiência de deposição).
Ainda há muitos desafios a superar antes de sair do laboratório para clínicas e população em geral: padronização da dose, segurança, aplicabilidade em diferentes perfis de pessoas, regulação, testes clínicos.