PorDra. Ana Lucia Coradazzi
Já fazia algum tempo que Clara* tinha perdido sua mãe, aos 89 anos, portadora de Alzheimer avançado, com complicações de uma pneumonia.

Nos meses que sucederam o falecimento, ela nunca tinha tocado no assunto comigo, apesar da boa relação médico-paciente que tínhamos. Na verdade, eu nem mesmo sabia que sua mãe tinha morrido. Foi numa consulta de rotina, sem nada de especial, que ela deixou escapar, meio que sem perceber:

– Sim, isso foi logo depois que minha mãe morreu.

Eu me surpreendi.

– Puxa, Clara, eu não sabia que ela tinha falecido… meus sentimentos. O que houve?

Foram essas palavras que abriram as portas para a angústia que Clara vinha cultivando dentro de si mesma. Sem me olhar nos olhos, ela contou sobre o início da pneumonia, quando a mãe, Dona Pedrina*, foi levada ao hospital com tosse e desânimo, e imediatamente internada para receber antibióticos. A cascata de complicações que se seguiram era assustadora. Apesar dos antibióticos, a infecção não dava sinais de melhora, e Dona Pedrina passou a respirar com dificuldade.

Como não conseguia se alimentar, foi colocada uma sonda enteral pela narina, o que a incomodava muito, e para que ela não arrancasse a sonda a equipe de saúde a mantinha restrita ao leito, com o que chamamos de “contenção física” (em outras palavras, suas mãos ficavam amarradas à cama o tempo todo). Após quase uma semana de internação, o quadro só se agravava, e Dona Pedrina passou a ficar agressiva. Gritava e tentava soltar as amarras, às vezes chamava o marido já falecido. Não reconhecia ninguém, nem mesmo a própria Clara. Os pulmões também não mostravam qualquer sinal de melhora.

No décimo dia de internação, Clara recebeu um telefonema da irmã, no meio da madrugada, informando que a mãe tinha sido transferida para a UTI porque seus pulmões tinham parado de funcionar. Ela tinha sido colocada em aparelhos que passaram a respirar por ela. Clara chegou ao hospital pouco depois do telefonema, mas não conseguiu ver Dona Pedrina até o dia seguinte, devido aos rigorosos horários de visita do hospital. Ela se lembrava daquelas horas com um pesar imenso. Imagens da sua mãe sozinha, inconsciente, em meio a tubos e ruídos estranhos, invadiam seus pensamentos.

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Ela não conseguia comer, dormir, mal podia raciocinar. Os dias que se seguiram foram ainda piores. Os órgãos de Dona Pedrina iam parando um após o outro, e para cada falência orgânica havia um novo procedimento. Sua pressão arterial estava baixa, então ela estava recebendo medicamentos (chamamos de drogas vasoativas) para que permanecesse minimamente estável. A hipotensão tinha causado lesões em seus rins, e a equipe de saúde tinha começado a hemodiálise três vezes por semana.

A coleta de exames de sangue tinha que ser diária, mesmo com os braços de Dona Pedrina tomados por hematomas e equimoses. A enormidade de soros e medicamentos assustava Clara. Reposição de cálcio. Medicações para controlar o potássio. Antibióticos. Sedativos. Dosagens periódicas da glicose. Clara me contou, agora já olhando para mim, que não conseguia mais enxergar sua mãe no meio da parafernália médica. Tudo o que via era uma cortina barulhenta de tubos, frascos, aparelhos, sondas e cabos em torno de alguém que ela não reconhecia mais. Tinham sido doze dias de UTI até que Dona Pedrina finalmente descansasse em paz.

Levantei da cadeira e fui abraçar Clara. Ela estava chorando, um choro contido e profundamente triste. Perguntei como ela estava lidando com tudo aquilo, e o que a angustiava em toda essa história. Ela foi categórica: “O que me dói, doutora, é não ter tido a oportunidade de me despedir dela. Hoje olho para trás e vejo como era óbvio, já nos primeiros dias de internação, que ela não sairia viva do hospital.

Não era preciso ser médico para saber disso. Mas ninguém, nem da família e nem da equipe de saúde, disse uma só palavra. O que me angustia é termos todos ficado em silêncio. Nós fingíamos que não entendíamos que a vida dela estava chegando ao final. Os médicos se escondiam atrás dos protocolos, tratando complicação atrás de complicação, órgão atrás de órgão, sem se perguntar se aquilo fazia algum sentido. Os enfermeiros restringiam seu papel a executar tarefas, inúmeras tarefas, sem juntar todas as peças, sem questionar. O maldito pacto de silêncio fez com que minha mãe passasse seus últimos dias sendo torturada sem qualquer possibilidade de benefício”.

As palavras de Clara eram muito familiares para mim. Não foram poucas as vezes em que presenciei pacientes sem qualquer perspectiva de melhora sendo rapidamente engolidos por protocolos e tecnologias avançadas que não foram desenhados para eles. Pessoas que tiveram sua dignidade roubada no final de suas vidas. Clara estava certa. A culpa é, na maioria das vezes, do silêncio.

O silêncio que paira sobre as famílias, que não querem verbalizar algo doloroso como a morte de alguém que amam. O silêncio dos médicos e enfermeiros, que não têm tempo, treinamento ou disposição para começar conversas que realmente farão a diferença para aquelas pessoas. O silêncio que só é quebrado pelo incessante ruído dos monitores cardíacos e alarmes da UTI. Silêncio que causa dor, e que passa a morar no coração dos familiares por anos após o desfecho final.

Talvez a dor de estarmos prestes a fazer nossa travessia final seja tão grande que nos emudeça. Talvez o final seja tão assustador que cale a todos ao nosso redor, confrontando cada um com sua própria finitude, paralisando a capacidade de quebrar o silêncio e agir com compaixão e dignidade.

Mas fugir da travessia, certamente, é ainda mais doloroso. Fernando Pessoa certa vez escreveu: “É o tempo da travessia. E, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos”. O silêncio, sem dúvida, é o caminho mais curto para nos manter, para sempre, ancorados às margens de nós mesmos.

*nomes fictícios para preservar a privacidade das pessoas envolvidas

* Nota: As informações e sugestões contidas neste artigo têm caráter meramente informativo. Elas não substituem o aconselhamento e acompanhamentos de médicos, nutricionistas, psicólogos, profissionais de educação física e outros especialistas.





Sou médica oncologista clínica. Há alguns anos decidi complementar minha formação através de uma especialização em Cuidados Paliativos, e desde então minha vida nunca mais foi a mesma. Aprendi que a morte não precisa ser tão triste, tão amarga. E que todo sofrimento pode ser amenizado através da empatia e do apoio incondicional. O convívio diário com pacientes portadores de câncer é algo tão valioso que, a meu ver, tem que ser compartilhado.