“O que mais me intriga é a questão do poder. Quero entender o que falta para nós, brasileiras, sentirmos o poder que temos. Porque a mulher já tem o poder objetivo: no trabalho, em casa, tem independência financeira. Mas sente uma miséria subjetiva.

Quando fui para a Alemanha fazer uma conferência sobre o corpo, tive um choque cultural que foi o grande clique da minha vida. As alemãs têm casas, carros, viajam, casam ou não, têm filhos ou não, e chegam aos 60 anos felizes. São poderosas subjetivamente também. Falam o que pensam: ‘Isso está me atrapalhando’ ou ‘não vai me ajudar a lavar a louça?’. São diretas.(…) Gosto desse jeito firme de ser mulher. E dá para continuar sendo feminina, delicada, suave, como é a brasileira. Voltei dessa viagem com a ideia de estudar o envelhecimento(…).

Quando comecei a conversar com mulheres de 40, 50 anos, elas só falavam da decadência do corpo e da falta de homem – ou das faltas dos homens. Nunca foram tão poderosas, mas o discurso é ‘meu corpo está caindo’ ou ‘meu marido não me dá mais atenção’. Esse contraste me intriga. E quem mais sofre e tem medo do envelhecimento, quem mais reclama do corpo e dos homens são as meninas de 20, 30, 40 anos. Ficam com fixação na ruguinha, no cabelo branco, na celulite…

Enquanto as mulheres de 60, 70 anos aprendem a ver o todo, e não o detalhe. Estão mais felizes, valorizam mais a liberdade do que o corpo; mais a saúde do que a aparência; mais as amizades do que os homens. Na última Bienal do Livro, participei da mesa ‘Elas não envelhecem mais – as novas velhas’, e falei: ‘Dane-se a ruguinha, dane-se a celulite e dane-se a pele do pescoço que retrata o envelhecimento’. Precisa esperar chegar aos 60 para descobrir isso? (…)

A sociedade está introjetada na mulher. A antropologia ajuda a compreender que o que você pensa ser um fracasso individual na verdade é um problema coletivo, cultural. Quando você está sofrendo porque engordou, porque o marido te trocou… tem um monte de mulher sofrendo pela mesma coisa. Saber disso dá uma noção de que não é um desvio individual. Mas o sofrimento é, sim, individual, então elas sofrem realmente porque estão envelhecendo, porque não conseguiram seguir o padrão, porque o casamento não deu certo, porque os filhos não são como queriam. Às vezes a gente acha que está fazendo uma escolha, mas é a cultura dentro de nós escolhendo. Quando dá um clique, você começa a fazer escolhas dentro do que a cultura oferece. E hoje, na cultura brasileira, as mulheres já têm mais poder de escolha(…).

(…) Do jeito que está hoje, elas têm poucas escolhas. O modelo ideal de mulher é a que faz tudo: trabalha, se cuida, tem marido e filhos. O maior problema é que as coisas ainda são polarizadas no Brasil. Tem que ter filho e marido, mas tem que se dedicar ao trabalho. Não pode ser virgem, mas não pode ter muitos parceiros. Qual é a medida? As mulheres têm medo de errar e pagar um preço alto. ‘Se eu investir no trabalho, o que vai acontecer com minha vida pessoal?’, ‘se cuidar dos meus filhos, o que vai acontecer com minha carreira?’ ou ‘não quero ter filho, mas e se quiser aos 45?’.

Quero que cada mulher seja livre para fazer escolhas. Se quiser casar, trabalhar, cuidar do marido, do filho, do corpo, é uma decisão. Mas, se não quiser fazer tudo, que possa optar com a mesma legitimidade. Se não quiser ter filhos, como eu não quis, que ninguém fique falando: ‘Coitadinha, vai ter uma velhice solitária’.

Nunca tive vontade de ter filhos. Talvez porque não tive uma infância feliz. Talvez
porque seja preenchida pelo meu trabalho. Dos 35 aos 38 anos, que é a fase mais crítica para a mulher nesse assunto, fiquei em dúvida. E tive muita cobrança das amigas. Mas não me arrependo dessa decisão.

Apesar da infância difícil, não gosto de me fazer de vítima. Não combina com o que defendo para minha vida. Muita gente tem histórias de violência… Eu cresci e fiz a opção por ter uma vida gostosa, prazerosa, de realizações. Não sou 100% feliz, tenho uma tristeza permanente (…). É uma tristeza crônica, mas que não atrapalha minha vida, porque não sou deprimida.

Fiz 21 anos de análise, e uma hora você consegue administrar sozinha os problemas. Hoje, a filosofia me ajuda: Schopenhauer, Spinoza, Nietzsche, Marco Aurélio… Nunca tomei antidepressivo nem remédios que mudam o humor. Minhas amigas tomam e falam para eu tomar, mas não quero. Não bebo, nunca usei drogas. Acredito que essa tristeza me alimenta para ser quem sou, para ter a sensibilidade que me permite escrever o que escrevo. Sei que vai passar. E, ao mesmo tempo, sei que nunca vai passar. Aprendi a viver com isso. É como minha insônia. Como sou muito ligada, tenho dificuldade de desligar. É uma característica. Prefiro viver de verdade, mesmo que seja duro, do que tapar ou mentir. Hoje tenho uma vida que me deixa satisfeita. E construí tudo sozinha, nunca dependi economicamente de homem”. (Trecho de uma entrevista com a antropóloga e escritora, Mirian Goldenberg. Leia a entrevista completa aqui).

Mirian Goldenberg, há mais de duas décadas investiga temas igualmente corriqueiros e tabus, como infidelidade e envelhecimento. A autora do best-seller A outra, e de Toda Mulher é Meio Leila Diniz (1995). Hoje, divide o tempo entre o trabalho em casa – onde escreve seus artigos semanais da Folha de S.Paulo –, as aulas na Universidade Federal do Rio de Janeiro, consultorias, palestras e conferências pelo Brasil e pela Europa e de mais 14 livros, entre eles, ‘Por que os homens e as mulheres traem?’.

Fonte:Portal Raízes